“Motorista embriagado mata grávida e bebê em acidente
Lílian Maria dos Santos, 30, dirigia um Idea -ao lado do marido e com a filha de oito anos e uma sobrinha - quando seu carro foi atingido por um Peugeot na esquina das avenidas Abraão de Morais e Bosque da Saúde, na zona sul.
O Peugeot - em alta velocidade, segundo a polícia - era dirigido pelo representante comercial Carlos Alberto Aparecido de Souza Dias Fiore, 29.
O Idea capotou e Lílian foi arremessada para fora. Grávida de sete meses, morreu ali.
O resgate a levou para o Hospital São Paulo para tentar salvar o bebê com uma cesárea de emergência. A criança, um menino, nasceu viva, mas morreu à tarde na UTI (…)
Fiore foi levado para o Hospital Santa Cruz e, depois, para o 26º DP, onde permanecia até ontem. Foi indiciado sob suspeita de duplo homicídio doloso (intencional), por ter assumido o risco de matar ao dirigir em alta velocidade e embriagado, disse o delegado Cláudio Salles Jr., do 16º DP.”
A matéria diz que a mãe morta estava grávida no momento do acidente, mas que o motorista responderá por duplo homicídio. Não seria um homicídio e um aborto, já que ela estava grávida no momento do acidente? Não, e isso serve para entendermos algo interessante em nosso direito.
O artigo 4o de nosso Código Penal diz que “considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”. À primeira vista pode parecer que se vamos considerar o momento do ato – o acidente, no caso acima – deveria ser um aborto, pois o feto ainda não havia nascido (para a lei brasileira, a vida só começa no momento do nascimento. Antes disso, há a ‘expectativa de vida’ e não ‘vida’).
A criança morreu por causa do acidente. O aborto não ocorreu no momento do acidente. A criança chegou a nascer com vida, mas essa vida se extinguiu logo em seguida devido às consequências diretas do acidente causado antes de seu nascimento. O vínculo causal (acidente-morte) não foi interrompido.
Mas há mais um detalhe: o artigo citado acima diz que o crime é considerado praticado no momento da ação. Levado ao extremo, o artigo 4o impossibilitaria a condenação de qualquer pessoa por homicídio já que no momento em que ele de fato aperta o gatilho ('momento da ação'), a vítima ainda está viva.
É por isso que é necessário esperar o resultado para se saber que crime foi praticado. Imagine, por exemplo, que um criminoso dê um tiro na vítima, mas a vítima não morre imediatamente. Por qual crime o criminoso deve responder: pelo homicídio ou pela tentativa de homicídio? Até que a vítima morra ou os médicos digam que ela ficará bem, não é possível saber. O crime foi cometido no momento em que o bandido apertou o gatilho, mas só saberemos se ele será acusado por um crime consumado ou tentado depois que soubermos o resultado de sua ação: morte ou apenas tentativa de morte.
Isso, óbvio, cria certa confusão. Por exemplo, o que acontece se a vítima ficar entre a vida e a morte por vários anos ou décadas? Devemos esperar pelo desfecho para processar o autor? Se o processo for levado adiante enquanto a vítima estiver viva, o autor só poderá ser condenado por uma tentativa de homicídio (ninguém pode ser condenado pela morte de alguém que está vivo). E, se depois de ter sido condenado por uma tentativa, a vítima morrer, ele não poderá ser ‘re-condenado’ pelo crime consumado porque ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime.
Alguns países (Inglaterra, por exemplo) resolveram o problema estabelecendo que o crime será analisado no momento da consequência (o momento da ação é apenas o início ou meio do crime e não o seu fim). Outros (alguns estados americanos e a Nova Zelândia, por exemplo), estabelecem um tempo máximo de incerteza. Na Califórnia, por exemplo, depois de três anos e um dia, considera-se que o crime deve ser aquele dos resultados já produzidos, ainda que o resultado na vida real continue incerto. Se vítima continuar entre a vida e a morte, julga-se o autor pelo crime tentado.